FUGA
Sentia o sangue a latejar nas têmporas mas mantinha uma certa postura altiva, que o salvaguardava de um verdadeiro ataque de nervos raivosos. Nunca pensara que esperar pacientemente por um transporte fosse tão desgastante, durante anos assistira à plácida espera que donas de casa ou empregadas domésticas faziam aos autocarros sempre a abarrotar, e sempre pensara na sorte que tais pessoas tinham por depender de outros para se locomover.
Esperou, esperou, com os olhos fixos nas vitrines com publicidade, mais ou menos imbecil, com a mente a divagar enquanto perseguia mentalmente a menina de rabiosque redondo, ou o menino com as calças a escorregar pelas pernas abaixo. Atentava especialmente na passadeira, esse elemento urbano que tanto dinamismo confere à rua enquanto permite, a tempos espassados, um gotejar de massa humana de um lado para o outro, de um lado parao outro...
Conforme o som sibilante que trespassava a atmosfera consumia a sua última réstia de paciência, Jacob trauteava uma qualquer melodia doentia, daquelas que nunca mais se despegam da memória.
Pensou numa última tarefa que tinha prevista lá para o fim do dia e deixou-se escorregar docemente de tracinho em tracinho da passadeira, enquanto encetava a fuga duma espera incerta.
Caderno de Céline, Álvaro Lapa, 1990.
3 Comments:
quantas destas fugas não acontecerão hoje em Lisboa, em dia de greve no metro. bonito, lontra.
é semi temático.... mas calhou no dia certo ;)
muito bom.
muito bom.
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